1. A variação da taxa cambial, para mais ou para menos, não pode ser considerada suficiente para, isoladamente, fundamentar a necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Para que a variação do câmbio seja considerada um fato apto a ocasionar uma recomposição nos contratos, considerando se tratar de fato previsível, deve culminar consequências incalculáveis (consequências cuja previsão não seja possível pelo gestor médio quando da vinculação contratual), fugir à normalidade, ou seja, à flutuação cambial típica do regime de câmbio flutuante e, sobretudo, acarretar onerosidade excessiva no contrato a ponto de ocasionar um rompimento na equação econômico-financeira, nos termos previstos no art. 65, inciso II, alínea d, da Lei 8.666/1993. Ao apreciar tomada de contas especial originária de representação que apontara possível irregularidade perpetrada pela Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp) no pagamento de indenização relativa à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro de contrato de “migração e aquisição de novas licenças de produtos da Oracle versão 11 ou superior, com serviço de suporte e atualização” – recomposição fundamentada na variação cambial imprevisível ocorrida após a assinatura da avença – , a Primeira Câmara do TCU, por meio do Acórdão 4125/2019, julgou irregulares as contas dos responsáveis, com imputação de débito solidário de R$ 1.209.686,34 e aplicação da multa prevista no art. 57 da Lei 8.443/1992, no valor individual de R$ 133.000,00. Inconformados, os responsáveis interpuseram recursos de reconsideração. No exame das peças recursais, o relator salientou em seu voto, preliminarmente, que a razão de decidir da deliberação condenatória fora a não comprovação da imprevisibilidade da variação cambial e do respectivo prejuízo assumido pela empresa. Tratara-se, segundo ele, de flutuação ordinária, com riscos que deveriam ser arcados pela própria contratada, incapazes de demandar o reequilíbrio contratual. Concordou então com a instrução da unidade técnica no sentido de que a empresa“não juntou qualquer documento relativo aos seus custos perante a Oracle ou outro que pudesse indicar o seu prejuízo”. Além disso,“os expedientes emitidos pelo setor jurídico da Codesp se basearam apenas na declaração da empresa, deixando de requerer evidências quanto ao efetivo dano e de analisar a imprevisibilidade da variação cambial.” (grifos do relator). Para o relator, a natureza ordinária da variação cambial estaria demonstrada em face da tendência verificada nas semanas anteriores à assinatura do contrato e ao pagamento dos serviços. Nesse aspecto, reportou-se novamente à instrução técnica, na qual restara assente que “a análise dos valores do dólar constantes na tabela elaborada pela auditoria interna da Codesp, relativa à variação do câmbio do dólar entre 1º/7/2014 e 27/2/2015, fornecida pelo Banco Central do Brasil (peça 2, p. 39-44, do TC 030.063/2017-5), evidencia que, nos três meses que antecederam a apresentação da proposta da empresa na fase de cotação de preços, em 7/10/2014, já era visível a flutuação do câmbio, materializada em variação de cerca de 9% positivos no período. Da data da proposta até a sessão do pregão, realizada em 5/12/2014, a cotação subiu mais 7%, confirmando a desvalorização do real em relação ao dólar. Entre a data de abertura da proposta (5/12/2014) e a data do primeiro pagamento (14/1/2015), o câmbio variou 1,29%, e até a data do segundo pagamento, em 24/2/2015, 10,67%.” (grifos do relator). Não obstante isso, o relator divergiu pontualmente da unidade instrutiva quanto ao entendimento de que riscos cambiais consumam eventos ordinários – ainda que existisse tendência de alta do dólar à época da assinatura do contrato – impassíveis de consumar o desequilíbrio da avença. A seu ver, não havendo direcionamento contratual explícito – em matriz de riscos ou instrumento do gênero –, variações cambiais com o potencial de ensejar onerosidade excessiva a qualquer das partes podem redundar na necessidade de termo aditivo para a recomposição do equilíbrio contratual. Na sua ótica, ainda que possa existir certa previsibilidade na flutuação do câmbio, e mesmo que possa existir um viés de alta ou de baixa da moeda estrangeira, “existirá sempre uma imponderação na sua cotação. Esse é, senão, o caso clássico de fato previsível, mas de consequências incalculáveis”. Em “especulação argumentativa”, assinalou que “poderia acontecer, em plena execução do contrato, de ocorrer evento absolutamente improvável que dobrasse o valor da moeda. Em se tratando de insumo importado, não seria difícil auscultar a absoluta incapacidade da contratada em assumir sozinha tal encargo, podendo mesmo intuir o impedimento da execução da pactuação. As cláusulas rebus sic stantibus, pois, visam justamente proteger a finalidade do contrato em face dessas circunstâncias, alheias às condições (herméticas) sob as quais as partes manifestaram a sua vontade”. Na sequência, a corroborar sua linha de argumentação, transcreveu os seguintes excertos do voto condutor do Acórdão 1431/2017-Plenário: “A variação da taxa cambial, para mais ou para menos, não pode ser considerada suficiente para, isoladamente, fundamentar a necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Para que a variação do câmbio seja considerada um fato apto a ocasionar uma recomposição nos contratos, considerando se tratar de fato previsível, deve culminar consequências incalculáveis (consequências cuja previsão não seja possível pelo gestor médio quando da vinculação contratual), fugir à normalidade, ou seja, à flutuação cambial típica do regime de câmbio flutuante e, sobretudo, acarretar onerosidade excessiva no contrato a ponto de ocasionar um rompimento na equação econômico-financeira, nos termos previstos no art. 65, inciso II, alínea ‘d’, da Lei 8.666/1993. […] Nos contratos firmados em real que tenham por objeto principal a prestação de serviços no exterior, a variação cambial inesperada, súbita e significativa pode ser suficiente para fundamentar a concessão de reequilíbrio econômico-financeiro, mas apenas em relação aos insumos humanos e materiais adquiridos na localidade de prestação dos serviços, desde que possa retardar ou impedir a execução do contrato.” (grifos do relator). Nesse mesmo contexto, trouxe à colação o seguinte trecho do voto que embasou o Acórdão 1085/2015-Plenário: “A mera variação de preços ou flutuação cambial não é suficiente para a realização de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, sendo essencial a presença de uma das hipóteses previstas no art. 65, inciso II, alínea ‘d’, da Lei 8.666/1993, associada à demonstração objetiva de que ocorrências supervenientes tornaram a execução contratual excessivamente onerosa para uma das partes.” (grifos do relator). Retomando o caso concreto, avaliou que os argumentos recursais falharam “não em demonstrar que o câmbio pode redundar – em tese – o reequilíbrio contratual, mas em comprovar a excessividade do impacto no contrato, de forma a impedir, ou onerar excessivamente e desproporcionalmente a contratada”. E tal comprovação “perpassaria pela apresentação fática e objetiva do valor de importação – com documentos fiscais respectivos – do objeto contratual, o que remanesce como não apresentado”, isso porque, conforme os autos, acerca dos valores pagos à contratada, “constam duas notas fiscais emitidas: a primeira em 23/12/2014, no valor de R$ 2.995.411,79; e a segunda em 14/1/2015, de R$ 1.872.588,21. A data da proposta empreendida pela empresa [contratada] é de 5/12/2014. Segundo cotações oficiais do dólar, tidas a partir de boletim do Banco Central, nas respectivas datas, é R$ 2,59 na data da proposta; R$ 2,68 no primeiro pagamento; e R$ 2,62 em 14/1/2015”. Dito de outro modo, prosseguiu o relator, “18 dias depois da proposta, pagou-se 61,5% do total do contrato, com câmbio 3,47% mais caro; e 40 dias depois, outra parcela de 38,5% com o valor da moeda R$ 1,16% mais oneroso. Na média, o contrato foi executado com o câmbio 2,58% mais caro que a cotação da data da proposta, em 28 dias médios de execução contratual”. E arrematou: “Creio queem tal espaço de tempo (quase um mês), os pouco mais de 2,5% de onerosidade contratual não possam ser classificados como ‘excessivos’, a ponto de impedir, em extrema gravidade, o adimplemento do contrato nos moldes pactuados. Trata-se, sim, de variação ordinária, apta a ser absorvida pela empresa em riscos (módicos) típicos de negócio. Em verdade, se o câmbio oscilasse em menos 2,5%, tal bônus, com justeza, seria da empresa”. Como ideia de onerosidade excessiva, o relator apresentou excerto do Acórdão 1905/2020-Plenário, que estabelecera como baliza para a ocorrência de desequilíbrio o lucro líquido presumido da contratada, e mencionou, como exemplo comparativo, a Resolução-DNIT 13/2021 – normativo interno do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes que versa sobre reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos –, a qual considera que“não há onerosidade excessiva quando o impacto da onerosidade à contratada for inferior a 5,11% (percentual tido com ‘lucro operacional referencial’)”. Nesse cenário, “os 2,5% médios de impacto, em 30 dias, estão longe de representar um valor extremo; ou anormal; ou impeditivo; ou excessivo, colocando em xeque um valor mínimo de contraprestação remuneratória pela intermediação do produto importado”, sem contar, também, a “completa ausência de demonstrativos do real custo praticado e dispendido pela empresa, sem o pressuposto de nexo causal entre o evento causador de desequilíbrio e o efeito material em seus encargos”. Complementou, ainda, que caso se considerasse que, pouco mais de um mês depois, se pudesse seguir, ipsis litteris, o valor do câmbio como referência de pagamentos, tal prática ensejaria um reajuste ilegal de contrato, com periodicidade inferior à anual, prática vedada pelo § 1º do art. 2º da Lei 10.192/2001. Assim sendo, o relator concluiu que a modificação do contrato autorizada pela Codesp, a título indenizatório, “representou um reajuste, travestido de revisão”, uma vez que “a monta da variação do valor da moeda – ainda mais desamparada de documentos que materializassem, exatamente, o que a contratada de fato dispendeu em encargos – não é capaz, no caso concreto, de materializar os requisitos da teoria da imprevisão para respaldar o pagamento ora discutido à empresa [contratada], especificamente quanto a onerosidade excessiva e o nexo causal do fato extraordinário na prestação contratual”. Ao final, o relator propôs, e o colegiado decidiu, negar provimento aos recursos interpostos.
Acórdão 8032/2023 Primeira Câmara, Recurso de Reconsideração, Relator Ministro Benjamin Zymler.